Explicando.....

Eu tenho uma paixão, um carinho muito grande por este blog.
Fiz ele durante uma estada minha em Brasília, na casa dos meus pais - e fui aprimorando-o de pouco a pouco, acrescentando coisas que gostava, deixando de escrever sobre coisas com as quais eu não possuía tamanha intimidade, etc.

O problema é que:
eu não tenho muitos seguidores - no final das contas, eu acabo sentindo que escrevo somente "para a Helena ver"... só que, como ocasionalmente aparecem comentários, eu não tenho coragem de sair por aí dissertando sobre o meu dia-a-dia, vontades e tristezas. Caso vocês quisessem isso, a web está CHEIA de páginas por aí exatamente com esse conteúdo.
Por esse motivo eu parei de escrever por aqui.

No dia 08 de agosto, às aproximadamente 8 horas da noite, eu sofri um acidente de carro indo para a minha casa, no interior de São Paulo. Meu pai dirigia e eu estava no banco do carona enquanto o Louis (o gatinho preto e branco) estava no banco de trás.
Um treminhão de cana (google it - vejam o tamanho do treco) entrou, sem aviso e sem adesivos refletores, em um ponto particularmente complicado de se ver anteriormente na estrada. Era um ponto um pouco baixo, que vinha depois de uma grande elevação - logo, nós, que ainda estávamos subindo o morro, não enxergamos o que havia do outro lado.
Sem adesivos refletores, a caçamba do caminhão, virada ainda perpendicularmente na pista, não era visível - pois na grande maioria das rodovias estaduais não há luz - e meu pai não viu. Eu vi, gritei, ele freiou.
Isso é tudo de que eu me lembro.
Eu não consigo me lembrar de mais nada. Eu não me lembro do pânico que deve ter me acometido ao ver que a caçamba se aproximava e nós não parávamos. Eu não me lembro se gritei.
Eu não me lembro quando a barra de proteção direita do carro entrou no meu rosto e quebrou a minha mandíbula em 3 lugares diferentes. Eu não me lembro da dor, eu não me lembro do que eu senti.
Eu tento lembrar, às vezes. Eu tento lembrar pois eu queria muito saber o que me impossibilitava de salvar o Louis, ou de sair dali - eu sei que fiquei presa nas ferragens, mas será que, consciente, eu ficaria? - e fazer alguma coisa.
Eu não me lembro de o meu pai saindo do carro, de ele tentar me tirar das ferragens. Eu não me lembro do Louis tentar fugir e ser atropelado, enquanto meu pai se desperava ainda mais e ia atrás dele, sendo segurado pelos paramédicos. Eu não vivi a hora do desespero do acidente.... e não sei se gostaria de lembrar de tudo, de viver tudo. Eu perdi muito mais do que o carro e o rosto naquele acidente; além de ter perdido um dos seres que eu mais considerava no mundo, eu perdi a paz de espírito do meu pai, perdi meu lar e a minha liberdade. Eu me perdi. Eu perdi todos os pontos de referência "da Helena".

Quando eu comento alguma coisa dessas com alguém, a resposta automática, da grande maioria das pessoas, é: "Olhe pelo lado bom - você não teve nada neurológico, você não perdeu nenhum membro, não morreu".
Agora, voltando para a casa dos meus pais, em Brasília, eu vivo com uma nova resposta: "Agradeça pelo que você tem. Pense nas crianças do Hospital Sara, aquilo ali é triste."

Eu não consigo imaginar o que seja ser uma daquelas crianças do Sara. E eu, 4 meses depois do meu acidente (cheia de complicações, cirurgias e cicatrizes), não tenho idéia do sofrimento ao qual elas estão propícias - e pior, acostumadas. Se eu não tenho idéia, quem me fala isso tem uma idéia muito menor - tem a idéia de como é sofrer, perder um ente querido... mas poucos passaram tanto tempo no hospital, viram o sofrimento praticamente palpável que nos acomete.

Pensar nas pessoas que não tiveram tanta sorte como eu - com lesão medular, morte cerebral, morte - ou nas crianças que nasceram com os mais variados tipos de doenças seríssimas, tão variadas que eu nem conseguiria listar... não faz com que eu me sinta melhor. Faz com que eu me sinta cada vez pior.
Imaginar como seria se eu partilhasse essa estória de vida com essas pessoas... é simplesmente impossível. É impossível para uma pessoa que nunca viveu este tipo de coisa entender, sentir, IMAGINAR o dia-a-dia das que acabaram não tendo tanta sorte.

Quando alguém me diz para pensar nessas alternativas/pessoas, não apenas está dizendo que tudo que eu estou passando não é tão ruim assim - que eu não sofro tanto, que eu não sinto tanta dor assim, que as minhas complicações são "fichinha" - quanto está dizendo para eu ter pena das pessoas em condições piores do que a minha.
Normalmente, quem me fala isso é digno de pena, não o menino de 7 anos no Sara com leucemia desde os 3. Ele infelizmente tem, não apenas uma vida de privações, dificuldades e dor, mas esse menino ri, brinca, luta. Ele nunca foi nem nunca será digno de pena.

O meu sofrimento não apenas é válido, mas também é real e palpável. O sofrimento do menino com leucemia é tão válido, real e palpável quanto - mas nunca haverá um meio de mensurar e comparar esses dois sofrimentos, essas duas dificuldades. A vida dele é muito mais difícil do que a minha e eu tenho a certeza de que uma hora as minhas complicações pós-cirúrgicas terminarão e eu me sentirei melhor, por mais que isso demore... mas não é por isso que as pessoas tem o direito de mandar que eu não sofra. Não é por isso que elas tem o direito de me mandar ver o sofrimento alheio e recolher-me à minha insignificância.
Não há comparação. Não é porque eu vou ficar boa um dia que eu não tenho o direito de sofrer.



Acabou saindo um desabafo - não era a minha intenção. A minha intenção era explicar a minha ausência e dizer que eu não tenho previsões de voltar a escrever por aqui... espero que logo.


Obrigada.

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